Jacques Bouveresse 

 

Tradução: Priscila Santos da Costa

 

Se existe um ponto em comum entre Bourdieu e Wittgenstein, é que ambos possuem uma consciência aguda da ambiguidade da palavra “regra” ou daquilo que eu prefiro chamar de sentidos diferentes, e talvez até muito diferentes, com os quais a palavra “regra” pode ser empregada. Bourdieu já citara, no Esboço de uma Teoria da Prática, a passagem das Investigações Filosóficas na qual Wittgenstein se pergunta em que sentido se pode falar da “regra a partir da qual alguém age?” e se é sempre possível falar de algo desse tipo no momento em que alguém utiliza uma palavra: “O que eu chamei de “A regra a partir da qual ele age”? – A hipótese que descreve satisfatoriamente a utilização das palavras que nós observamos, ou a regra que ele consulta enquanto utiliza os signos; ou aquela que ele nos oferece como resposta quando o interrogamos sobre a regra utilizada? – Mas qual seria ela se nem a observação nem a pergunta permitem o claro reconhecimento de uma regra? – Pois ele certamente me deu , quando eu o perguntei o que ele entendia por “N”, uma explicação, mas ele estava pronto a revogar e a modificar essa explicação. Consequentemente, como eu posso determinar a regra segundo a qual ele joga? Ele mesmo não a conhece. Ou, mais exatamente: o que a expressão “Regra segundo a qual ele joga” supostamente quer dizer aqui?” [PU, § 82]

Certamente existem dois níveis que devem ser claramente distinguidos na denúncia wittgensteiniana do que se pode chamar de “mitologia das regras”. A passagem que acaba de ser citada intervém no contexto de uma crítica da ideia de linguagem como cálculo ( à qual Wittgenstein ainda aderia à época do Tractatus), ou seja, da suposição de que “aquele que enuncia uma frase e a pensa [meint], ou a compreende, efetua um cálculo segundo regras determinadas” [PU,§ 81]. Não é verdadeiro, observa Wittgenstein, que no uso de uma palavra como “cadeira”, por exemplo, “nós estejamos equipados com regras para todas as possibilidades do seu emprego” [PU, § 80]; e isso evidentemente não significa que nós deixemos de atribuir a ela uma significação. O uso de uma palavra pode ser regular sem ser, por isso, “completamente limitado por regras” [PU, § 84].

Por outro lado Wittgenstein critica igualmente uma concepção que se pode chamar de “mecanicista” daquilo que ocorre no caso em que recorremos a um cálculo que obedece a regras estritas. Enquanto aplicamos regras que são explícitas e unívocas, como o são aparentemente as que utilizamos na matemática, parece que a compreensão da regra determina antecipadamente e de uma vez por todas o que deve ser feito em cada caso que possa vir a se apresentar. Para discutir essa concepção, Wittgenstein utiliza a metáfora dos trilhos que foram dispostos mais oumenos sao longo de uma distância infinita e sobre os quais o emprego de uma regra se faz automaticamente. Ora, os trilhos não poderiam de grande utilidade a não ser que a experiência da compreensão nos fornecesse uma representação não ambígua da parte invisível que vai para além dos exemplos que foram efetivamente vistos, e isso até o infinito. Mas é justamente isso que constitui o problema. Como a compreensão pode oferecer àquele que utiliza a regra a certeza de que ele está e continuará, em todas as circunstâncias, sobre os trilhos da utilização correta? Mesmo se o uso de uma palavra obedecesse a regras estritas, ainda seria válido se colocar o problema que resulta do que chamamos o “paradoxo de Wittgenstein”, ou, como seria melhor chamá-lo, o “paradoxo de Kripke”.

 

 

 

 

 

 

Regularidades, Determinismo e Liberdade

 


 

 

Por razões evidentes, Bourdieu é particularmente sensível à confusão entre dois usos muito diferentes da palavra “regra” – especialmente entre sociólogos: a regra como hipótese explicativa formulada pelo teórico para dar conta daquilo que ele observa; e a regra como princípio que governa realmente a prática dos agentes envolvidos. É essa confusão que leva a “considerar como princípio da prática dos agentes, a teoria que se deve elaborar para dar razão a essa prática” [CD, p. 76]. Essencialmente, é por causa dessa confusão quase inevitável que Bourdieu prefere finalmente se exprimir em termos de estratégias, de habitus ou de disposições, ao invés de regras. Em Coisas Ditas, ele explica que não se deve confundir a existência de regularidades com a presença de uma regra: “O jogo social é regrado, é um lugar de regularidades. As coisas se passam de maneira regular: os herdeiros ricos se casam regularmente com as caçulas ricas. Isso não quer dizer que seja regulamentado que herdeiros ricos devem se casar com caçulas ricas. Mesmo que nós possamos pensar que casar uma herdeira (rica e, a fortiori, uma caçula pobre) é um erro e mesmo, se aos olhos dos parentes, por exemplo, isso é uma falha. Eu posso dizer que toda a minha reflexão vem daí: como as condutas podem ser regradas sem serem produtos da obediência à uma regra? [...] Para construir um modelo do jogo que não seja nem um simples registro das normas explícitas, nem a enunciação de regularidades e ao mesmo tempo integrando tanto umas quanto as outras, deve-se refletir sobre os modos de existência diferentes dos princípios de regulamentação e da regularidade das práticas: existe, com certeza, o habitus, uma disposição regrada que engendra condições regradas e regulares a despeito de toda referência a regras.; e, nas sociedades onde o trabalho de codificação ainda não é muito avançado, o habitus é o princípio da maior parte das práticas. [CD, p.81-82]

Leibniz diz que nós temos um habitus por alguma coisa quando essa coisa se torna ordinária em virtude de uma disposição do agente (HABITUS est ad id quod solet fieri ex dispositione agentis) e define o espontâneo como aquilo cujo princípio reside no agente (SPONTANEUM est, cum principium agentis in agente)[1]. O que a liberdade adiciona a isso é a ideia de uma decisão apoiada sobre uma deliberação. A liberdade pode ser definida como “a espontaneidade agregada à deliberação” ou ainda como uma espontaneidade racional ou inteligente. Os animais são dotados de espontaneidade mas, não sendo dotados de razão, não são capazes de agir livremente. O fato de que a ação é produto de um habitus não ameaça a espontaneidade da ação na medida em que esta não é o produto de uma coerção externa, mas de uma disposição que se localiza no agente mesmo. Mas, na medida em que o exercício da liberdade inclui a deliberação, uma boa parte de nossas ações e, em particular aquelas que resultam de um habitus, são simplesmente espontâneas e não propriamente livres – mesmo que elas também não sejam fruto de uma coerção. Sobre esse ponto, pode-se observar que a razão pela qual a existência de determinismos - como os que a sociologia descreve - pode dar a impressão de ameaçar não somente a liberdade, mas também a espontaneidade das ações individuais, não provém absolutamente das regularidades que eles produzem no comportamento dos agentes: mas sobretudo do fato de que nós sentimos ainda hoje uma dificuldade muito maior que Aristóteles e Leibniz em fazer a distinção entre as ações que possuem o seu princípio no agente, e aquelas que possuem seu princípio fora dele e que podem ocorrer não somente sem ele, mas igualmente contra ele. Nós distinguimos sem problemas as ações que merecem ser chamadas “livres” daquelas que são obrigatórias. Mas o problema filosófico da liberdade aparece junto com a ideia da coerção insuspeita e da prisão invisível. Se nós somos mais ou menos aterrorizados pela ideia de que poderíamos não ser livres, é porque temos uma certa ideia da condição insuportável na qual viveríamos se não o fossemos. E, como observa Dennett, a literatura nos fornece múltiplas analogias que são igualmente inquietantes: “Não ser livre seria qualquer coisa como estar na prisão, ou estar hipnotizado, ou estar paralisado, ou ser uma marionete, ou... (pode-se continuar a lista).[2]

Dennett pensa que essas analogias não são simplesmente ilustrações, mas que elas estão de certa maneira na origem e no fundamento do problema filosófico mesmo: “Vocês estão certos de que não estão em uma espécie de prisão? Agora nós somos convidados a considerar uma cadeia de transformações que nos leva de prisões evidentes a prisões menos evidentes (mas não menos assustadoras), até prisões completamente invisíveis e imperceptíveis (mas não menos assustadoras). Considerem um cervo no parque Magdalen College. Ele está preso? Sim, mas não muito. O cerco é muito vasto. Suponhamos que nós o transportemos para um local mais vasto, a New Forest, com uma cerca ao redor dele. Ele ainda estaria preso? Me disseram que no estado do Maine, os cervos não se deslocam mais do que cinco milhas do seu local de nascença durante toda a vida. Se uma cerca fosse colocada fora dos limites normais (que pode ser ultrapassada sem nenhum entrave) das peregrinações que um cervo efetua durante a sua vida, o cervo nesse espaço estaria aprisionado? Talvez. Mas notem que o fato de que essa cerca tenha sido instalada por alguém faz diferença quanto às nossas intuições. Vocês se sentem aprisionados no planeta terra – da mesma maneira como Napoleão foi imobilizado na ilha de Elba? Uma coisa é nascer e viver na ilha de Elba, outra é ser colocado e mantido na mesma ilha por outra pessoa. Uma prisão sem um carcereiro não é uma prisão. Que ela seja ou não indesejável, depende de outras características; depende da maneira (se existe apenas uma) pela qual essa prisão impõe coerções que paralisam o estilo de vida de seus habitantes.[3]

Estas considerações são suficientes para explicar porque as teorias que invocam mecanismos e determinismos sociais para explicar nossas ações aparentemente mais livres e pessoais, são geralmente compreendidas como equivalentes à negação pura e simples da realidade daquilo que nós chamamos de liberdade e personalidade. O que é incômodo e mesmo insuportável não é que a liberdade da nossa ação se exerça dentro dos limites que talvez sejam diferentes daqueles que nós havíamos imaginados (se bem que eles poderiam ser exatamente o que devem ser, e nós continuaríamos, todavia, livres) mas sim a ideia de que nós poderíamos ser, mesmo em nossas ações mais livres, manipulados inteiramente por agentes invisíveis que, como diz Dennett “rivalizam contra nós pelo controle dos nossos corpos (ou, o que é ainda mais grave, de nossas almas[4] ), que estão aliados contra nós e possuem interesses contrários ou, ao menos, independentes dos nossos.” Nós consideramos óbvio, por exemplo, que o tipo de liberdade do qual nós necessitamos e que é o único digno de ser possuído, é aquele em que nós somos livres unicamente se “nós pudéssemos (sempre) ter feito de outra maneira”. Mas, como observa Dennett, é exatamente essa suposição, e não as descrições que se tenta dar das condições necessárias e suficientes para que nós tenhamos efetivamente esse tipo de poder, que deve ser examinada seriamente. Leibniz não via, por sua parte, nenhuma contradição no fato de que uma ação pudesse ser completamente determinada e, ao mesmo tempo, perfeitamente livre.

No jogo social, certos comportamentos regulares são resultado direto da vontade de conformar-se a regras codificadas e reconhecidas. Nesse caso, a regularidade é o produto da regra e a obediência à regra é um ato intencional, que implica o conhecimento e a compreensão daquilo que a regra dita para o caso em questão. Por outro lado, encontramos regularidades que são explicadas de maneira puramente causal com a ajuda de “mecanismos” subjacentes, em um sentido que não é muito diferente das explicações que se dão ao comportamento regular de objetos naturais. Aliás, tem-se a tendência a supor, tanto nas ciências do homem como nas ciências da natureza, que, onde quer que existam regularidades características, existem também mecanismos aos quais elas se devem e que, se nós os conhecêssemos, também poderíamos compreendê-las. Mas existe igualmente uma certa quantidade de condutas sociais regulares – e é provavelmente o que ocorre na maior parte dos casos – que não parecem poder ser explicada de maneira satisfatória nem pela invocação de regras a partir das quais os agentes alinham intencionalmente seus comportamentos, nem em termos de causalidade bruta. A esse nível intermediário é que intervém a noção crucial de habitus em Bourdieu.

Observemos de passagem que, se Wittgenstein critica sistematicamente a tendência a conceber a ação da regra como se exercendo da mesma maneira que a de uma lei causal – como se a regra se parecesse de qualquer maneira a uma força motriz que obriga o seguidor da regra a ir em uma direção determinada – ele rejeita com o mesmo vigor uma outra forma de mitologia que consiste em conceber as leis da natureza como as regras às quais os fenômenos naturais são obrigados a se conformar. No seu “Curso sobre a liberdade da vontade”, ele sublinha que a lei é uma expressão de uma regularidade, mas ela não é a causa de existência dessa regularidade, como ela o seria se nós pudéssemos dizer que os objetos são obrigados pela lei mesma a se comportar como eles se comportam. Wittgenstein conclui disso que, mesmo se as decisões apresentassem regularidades exprimíveis por leis, não se saberia bem por que isso deveria impedi-las de serem livres: “Não há razão pela qual eu não seria livre, mesmo se houvesse uma regularidade nas decisões. Não há nada que diga respeito à regularidade que possa tornar algo livre ou não. A noção de coerção existe se vocês pensam na regularidade como uma coerção – como aquela produzida pelos trilhos – se, além dessa noção de regularidade, entra em jogo a noção de: “Aquilo deve se movimentar de determinada maneira porque os trilhos estão postos desta maneira”.” [LV, p.88] Wittgenstein sustenta que os usos que nós fazemos de expressões como “livre”, “responsável”, etc., “são independentes da questão de saber se existem ou não leis da natureza” [CW, p.44]. Elas também são, a seus olhos, igualmente independentes da questão de saber se existem, por exemplo, leis da psicologia ou da sociologia. Consequentemente, as regularidades características que a sociologia e as ciências humanas conseguem geralmente colocar em evidência no comportamento dos agentes individuais não poderiam, dessa maneira, constituir razão para negar que suas ações pudessem permanecer, ainda sim, livres e responsáveis.

 

 

 

 

 

O sentido do jogo

 


 

 

Bourdieu recorre à noção de habitus para tentar achar uma via intermediária entre o objetivismo – que ele critica nos estruturalistas como Lévi-Strauss – e o espontaneísmo que os filósofos do sujeito tentam opor àquele. Os estruturalistas pensam o mundo social “como espaço de relações objetivas transcendente aos agentes e irredutível às interações entre os indivíduos.” [CD, p.18]. Bourdieu quer reintroduzir o agente que o estruturalismo reduz ao estado de “simples epifenômenos da estrutura” [CD, p.19], mas não o sujeito da tradição “humanista”, que se supõem agir em função de intenções que ele mesmo conhece e domina (e não por causas determinantes com relação às quais ele tudo ignora e sobre as quais ele não tem nenhuma compreensão real). Esse é outro ponto com relação ao qual Bourdieu se aproxima de Wittgenstein, para quem a solução também não consiste em escolher entre a noção tradicional do sujeito que fala e age – que é, de fato, mais que suspeito – e a ideia de dispositivos impessoais autônomos que constituem de alguma maneira os verdadeiros produtores de enunciações e ações das quais os supostos sujeitos se creem ingenuamente os autores. Essas duas concepções são igualmente místicas e existe, na realidade, uma terceira via.

Um dos maiores inconvenientes da noção de regra é, aos olhos de Bourdieu, que, como ela pode ser aplicada sem nenhuma precisão a coisas extremamente diferentes, ela permite mascarar oposições essenciais como, por exemplo, aquela que existe entre a sua própria posição e a de Lévi-Strauss: “Me parece que a oposição é mascarada pela ambiguidade da palavra regra, que permite o desaparecimento do próprio problema que eu tento colocar: não sabemos jamais se, por regra, entendemos um princípio do tipo jurídico ou quase jurídico mais ou menos consciente produzido e dominado pelos agentes, ou um conjunto de regularidades objetivas que se impõem a todos aqueles que entram no jogo. É a um desses dois sentidos que nós nos referimos quando falamos de regra do jogo. Mas nós podemos encontrar um terceiro sentido, aquele do modelo, do princípio construído pelo acadêmico para compreender o jogo. Eu creio que ao suprimir essas distinções nós corremos o risco de cair em um dos paralogismos mais funestos nas ciências humanas: aquele que consiste em confundir, segundo as velhas palavras de Marx, “as coisas da lógica pela lógica das coisas”. [Wittgenstein diria: “predica-se à coisa aquilo que reside no seu modo de representação.”] Para fugir disso, é necessário inscrever na teoria o princípio real das estratégias, ou seja, o seu sentido prático ou, se preferirmos, aquilo que os atletas chamam de o sentido do jogo, como domínio prático da sua lógica ou da necessidade imanente de um jogo e que se adquire pela experiência deste – funcionando na consciência e no discurso tal como os vivemos (à maneira das técnicas do corpo, por exemplo). Noções como a de habitus (ou sistema de disposições), de senso prático e de estratégia, estão ligadas ao esforço para sair do objetivismo estruturalista sem cair no subjetivismo.” [CD, p. 76-77]

Como Wittgenstein observou diversas vezes, a aprendizagem de um jogo pode passar pela formulação e aquisição explícita das regras que governam o jogo. Mas nós podemos adquirir igualmente o tipo de comportamento regular que corresponde ao domínio prático do jogo sem que a enunciação de qualquer regra tenha sido feita no processo. Eu posso saber como continuar corretamente uma sequência de números porque a – ou talvez se deva dizer, uma – fórmula algébrica que a engendra me tenha vindo ao espírito; mas eu posso também estar seguro de saber continuar a sequência sem que nenhuma regra em particular tenha passado pela cabeça, ou seja, sem dispor de nada além dos exemplos que me foram fornecidos. O caso da aprendizagem da linguagem é mais do segundo tipo que do primeiro. Por fim, existe a situação em que um observador externo procura explicar o jogo e que, para fazê-lo, formula hipóteses sobre as regras que os jogadores poderiam ter obedecido e que, talvez, obedeçam realmente, ou seja, procura formular um sistema de regras no qual o conhecimento tácito ou explícito constituiria uma condição suficiente (mas não forçosamente necessária ) para que as regularidades características que se observam no comportamento dos atores possam produzir-se efetivamente.

 

 

 

A criatividade e as regras

 


 

 

Os serviços teóricos que Bourdieu exige de sua noção de habitus ou de noções semelhantes, são evidentemente numerosos. O habitus é aquilo que permite compreender como “as condutas podem ser orientadas com relação a seus fins sem serem conscientemente dirigidas em direção a esses fins ou por esses fins” [CD, p.20]. “O habitus, ele diz ainda, possui com o mundo social do qual ele é produto uma verdadeira cumplicidade ontológica, princípio de um conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção e de um domínio prático das regularidades do mundo que permite a antecipação do que está por vir (o futuro, o porvir) sem a necessidade de colocá-lo enquanto tal.” [CD, p.22] E ele lamenta que se aplique às suas análises “ as mesmas alternativas que a noção de habitus visa descartar, como as de consciente e inconsciente, de explicação por causas determinantes ou por causas finais.” [CD, p.20]. A noção de habitus permite explicar como o sujeito da prática pode ser determinado e, ao mesmo tempo, agente. Não sendo de natureza mental (existem habitus que são apenas corporais), o habitus está para cá da distinção entre consciente/inconsciente, ele está igualmente antes do que seria uma simples coerção causal e daquilo que é livre no sentido em que ele escapa, pelo contrário, a qualquer tipo de coerção.

Bourdieu insiste particularmente no aspecto “criador” das práticas dirigidas por um habitus: “Eu queria reagir contra a orientação de Saussure (que, como eu mostrei no Sentido Prático, concebe a prática como simples execução) e do estruturalismo. Muito próximo de Chomsky, que se preocupou em dar uma intenção ativa, inventiva, à prática (ele pareceu a alguns defensores do personalismo como um baluarte da liberdade contra o determinismo estruturalista). Eu queria insistir nas capacidades geradoras das disposições, ao mesmo tempo considerando que elas se tratam de disposições adquiridas, socialmente constituídas. Portanto, pode-se perceber o quanto é absurda a classificação que inclui no estruturalismo destruidor do sujeito, um trabalho que foi orientado pela vontade de reintroduzir a prática do agente, sua capacidade de invenção e improvisação. Entretanto, eu queria relembrar que essa capacidade criadora, ativa, inventiva não era aquela do sujeito transcendental da tradição idealista, mas sim a de um sujeito que age”[CD, p.23]

Bourdieu às vezes exprime esse aspecto dizendo que, mesmo em jogos muito complexos como as trocas matrimoniais ou as práticas rituais, intervém um sistema de disposições que nós podemos pensar como análogo à gramática gerativa de Chomsky – “ à diferença de que se trata de disposições adquiridas pela experiência, portanto variáveis segundo o lugar e o momento. Esse “sentido do jogo”, como nós dizemos em francês, é o que permite o engendrar de uma infinidade de jogadas adaptadas a uma infinidade de situações possíveis que nenhuma regra, por mais complexa que seja, pode prever. Portanto, eu substitui as regras do parentesco pelas estratégias matrimoniais. [CD, p.19].

A referência a Chomsky nesse contexto é, à primeira vista, um pouco surpreendente, porque Chomsky é justamente um representante típico da teoria da linguagem como cálculo, cujo modelo é atribuído a Frege e que Wittgenstein criticou, e finalmente abandonou por completo. Em si mesma, a capacidade de engendrar uma infinidade de frases gramaticais corretas e de lhes atribuir interpretações semânticas aplicando regras puramente formais, não contém nada que ultrapasse intrinsecamente as possibilidades de um mecanismo. No mais, Katz e Fodor sublinharam explicitamente que a questão de saber qual interpretação semântica é atribuída a uma frase deve poder ser decidida por cálculos formais, sem que tenhamos que recorrer a qualquer tipo de intuição linguística: “A necessidade de possuir uma teoria semântica formal deriva da necessidade de evitar a vacuidade; pois uma teoria semântica é vazia na medida em que deve se apoiar de maneira essencial sobre intuições ou conhecimentos intuitivos do locutor, para que as regras da teoria sejam aplicadas corretamente.[5] Que se trate do aspecto semântico ou do aspecto sintático da competência, nos dois casos as regras em questão devem ser formalmente representáveis e suas operações devem ser mecanicamente efetuáveis. Nada na concepção que Chomsky possuía da natureza da competência linguística implicava que seu possuidor devesse necessariamente ser um ser consciente ou uma pessoa. A questão colocada era sobretudo: que tipo de autômato (abstrato) deve ser um sistema físico qualquer para ser capaz de construir e interpretar, como nós o fazemos, um número potencialmente ilimitado de frases de uma língua natural?

A criatividade propriamente dita - na medida em que ela se distingue da geratividade formal que resulta da simples recursividade das regras – se situa sobretudo em outro lugar, ao nível daquilo que Chomsky chama de “criatividade do uso”, ou seja, a capacidade de utilizar de maneira pertinente uma infinidade de frases diferentes – e, na maioria das vezes, novas – em situações igualmente inéditas. É somente nesse nível que se pode colocar como questão algo como o que Bourdieu chama de sentido do jogo ou de intuições do senso prático. Mas a linguística gerativa não possui nada a dizer sobre esse tipo de coisa, simplesmente porque ela é uma teoria da competência e não uma teoria do uso, ou talvez mais exatamente porque o aspecto da competência – se ainda se pode falar de competência – que é representado pela posses de um conhecimento ou de um senso prático que não pode ser explicitado em termos de regras, e que não diz respeito a ela de nenhuma maneira. Se, como diz Bourdieu, alguns acreditaram poder encontrar em Chomsky argumentos a favor de uma concepção personalista do sujeito criador, só pode ser ao preço de um mal entendido fundamental: que Chomsky, de resto, manteve sistematicamente.

Também não se deve imaginar que as regras da linguística chomskiniana são mais próximas que os modelos teóricos dos estruturalistas daquilo que Bourdieu chama “o princípio da prática dos agentes”, em oposição à teoria que foi construída para compreender a prática. O status deles é e continua sendo essencialmente aquele de hipóteses explicativas, mesmo se nos referimos a elas como regras que se supõem de conhecimento do locutor e que ele aplica tacitamente. Wittgensteinianos como Baker e Hacker sustentaram que Wittgenstein havia de alguma maneira desacreditado antecipadamente uma empreitada como a de Chomsky e, de maneira mais geral, toda tentativa de construção de uma teoria sistemática da significação concebida a partir do modelo fregiano de linguagem como cálculo. Isso se deve à observância de que as regras que nós não conhecemos e às quais somos reduzidos – como o faz a linguística que procura explicar o nosso comportamento formulando hipóteses – dificilmente exercem uma função normativa real. “Não existe comportamento normativo, já que as normas esperam por ser descobertas.”[6]

Eu creio que Baker e Hacker vão, nesse ponto, um pouco longe demais. Isso porque Wittgenstein insiste sobre as diferenças importantes que tendem a ser negligenciadas, mas não formula jamais proibições, nem contra o uso de noções como as de “regra tácita” ou de “ regra inconsciente”, nem contra outras de qualquer tipo. Poderia ser que noções desse tipo se revelem finalmente impossíveis de serem utilizadas de maneira coerente. Mas o que importa, aos olhos de Wittgenstein, é unicamente saber o que é feito no momento em que uma palavra ou expressão é utilizada, ou seja, não esquecer que uma regra conhecida e que está realmente implicada no jogo não se opõe a uma regra invocada a título de hipótese explicativa, simplesmente “como a expressão ‘Uma cadeira que eu vejo’ à expressão ‘Uma cadeira que eu não vejo porque está atrás de mim’ [GP, p.72].

 

 

 

Wittgenstein e a aplicação da regra

 


 

 

Noções como as de inovação, invenção, improvisação, etc., às quais Bourdieu deseja dar o lugar que elas merecem, podem interferir de duas maneiras bem diferentes na prática da obediência de uma regra. Uma invenção pode ser necessária porque a regra com a qual lidamos deixa subsistir uma margem de indeterminação mais ou menos importante, a saber, a aplicação da regra a um caso determinado pode provocar um problema de interpretação que não se pode esperar resolver com a invocação de uma regra suplementar que estabeleça a maneira correta de interpretá-la. A maior parte das regras que nós utilizamos são deste tipo e necessitam ser aplicadas, como se costuma a dizer, com inteligência (jugement) ou discernimento. Em numerosos casos, saber aplicar uma regra de maneira conveniente quer dizer, entre outras coisas, ser capaz de interpretá-la em função das circunstâncias e mesmo, eventualmente, de ignorá-la ou transgredi-la inteligentemente. Reflitamos sobre o que diz Musil sobre as regras morais, que são um pouco como uma peneira cujos buracos são no mínimo tão importantes quanto a parte compacta do dispositivo. Algumas regras dão a impressão de funcionar à maneira de um mecanismo porque elas determinam sua aplicação de uma maneira a não deixar nenhum espaço para qualquer tipo de iniciativa. Já outras limitam de maneira significativa a liberdade de movimento do seguidor mas não determinam de maneira unívoca o movimento que deve ser efetuado a cada etapa da aplicação. Nos termos da metáfora utilizada por Wittgenstein, nós poderíamos dizer que, se as primeiras se aparentam aos trilhos, as segundas determinam simplesmente uma direção geral, e não um trajeto preciso.

Wittgenstein contesta, de maneira geral, a ideia de que as regras – se as tomamos como sendo do primeiro tipo – exercem sua ação ao modo de uma coerção causal. Ele diz, por exemplo, que nós deveríamos olhar a demonstração não como um processo que nos coage/obriga, mas antes como um processo que nos dirige (fuhrt). Essa é uma maneira, entre outras, de dizer que a regra guia a ação mas não a produz da mesma maneira que uma força produz um efeito. A regra se aplica justamente às ações e, sejam elas submissas ou não às regras, as ações pertencem de qualquer maneira a um domínio e provêm de uma lógica que não é a mesma dos fenômenos naturais.

Se formos sensíveis ao paradoxo cético que se supõe ter sido formulado por Wittgenstein a propósito do que é “seguir uma regra”, podemos nos sentir tentados a concluir que nenhuma regra – nem mesmo as que são perfeitamente explícitas e unívocas - determina realmente a sua aplicação. De fato, o paradoxo parece significar que, qualquer que seja a maneira pela qual alguém aplicasse uma regra, aquela seria compatível com o modo com que esta tivesse sido interpretada – de tal modo que a regra resultaria das aplicações que tivessem sido feitas até aquele momento. A sequência de aplicações passadas é aparentemente incapaz de impor qualquer restrição à aplicação futura, o que significa que para cada etapa da aplicação de uma regra um ato de criação ou invenção é necessário (em um sentido mais ou menos literal) para determinar o que deve ser feito.

Contrariamente ao que creem certos intérpretes, o paradoxo não representa evidentemente a posição de Wittgenstein. O autor das Investigações Filosóficas procura determinar uma posição mediana satisfatória entre o Charybde da concepção objetivista (ou seja, platônica) da significação da regra como contendo nela mesma todas as aplicações sem que qualquer contribuição de nossa parte tenha que intervir; e o Scylla do anarquismo criativista, segundo o qual tudo reside, pelo contrário, na contribuição que nós devemos fazer a cada vez.

McDowell diz a propósito de um tipo de platonismo naturalizado que se trata de substituí-lo por aquilo que ele chama de “platonismo rastejante”. Wittgenstein não rejeita a ideia (que poder-se-ia chamar de platônica) de que a significação da regra contém, de alguma maneira, a totalidade das aplicações futuras nela mesma, mas procura simplesmente eliminar aquilo que o platonismo rastejante inclui de misterioso e inquietante, ao sugerir que a significação não pode realizar semelhante façanha a menos que em virtude de poderes que não possuem nada de natural e que devem ser simplesmente mágicos.[7]

Aquilo que chamamos de “fazer a mesma coisa que anteriormente” ou “aplicar corretamente a regra” não é determinado em si, e depende de uma prática regular da aplicação, e só possui sentido no seio de uma prática desse gênero. Como diz Wittgenstein, é um erro crer que uma regra leva por si mesma a algum lugar, mesmo se a pessoa não a segue. E é também um erro crer que essa pessoa é capaz de selecionar uma só e única possibilidade em um espaço abstrato que não estivesse já delimitado e estruturado por propensões, aptidões e reações que são constitutivas do pertencimento do sujeito ao mundo humano e ao universo das práticas humanas em geral.

O conceito de “fazer a mesma coisa” não é portanto constituído em um mundo platônico de significações, mas constituído dentro de uma prática. Ele é portanto bem determinado, mesmo que não o seja do ponto de vista exterior à prática, o qual procura adotar a concepção platônica, no mau sentido do termo. Se nós necessitamos simultaneamente da regra e de uma intuição particular para determinar aquilo que ela nos comanda cada vez que nós queremos aplicá-la, isso significa que a regra é ela mesma impotente e inoperante, portanto, inútil. Wittgenstein às vezes ironiza a concepção intuicionista que diz, ou parece dizer, que nós necessitamos de uma intuição para saber que devemos escrever 3 depois de 2 na sequência de números inteiros naturais. Ao invés de dizer que uma intuição é necessária a cada etapa da aplicação de uma regra, ele observa que seria melhor falar de uma decisão. Mas ele acrescenta que isso seria igualmente enganoso, porque nós claramente não decidimos nada; no caso normal, a aplicação correta resulta tão pouco de uma decisão entre inúmeras possibilidades quanto de uma intuição da única possibilidade. Falar de uma decisão parece menos pior já que evitaria qualquer tentação de procurar uma justificação ou uma razão lá onde não existe nenhuma. Wittgenstein não sustenta, portanto, uma concepção decisionista da aplicação, mas procura simplesmente tirar o crédito de uma concepção intelectualista da ação da regra, a partir da qual a aplicação resulta a cada vez de um ato de conhecimento especial. A noção de decisão se coloca afim de deslocar o problema do domínio do conhecimento para o domínio da ação: o ponto importante é que a aprendizagem da regra possui como consequência o fato de que, em determinado estágio da aplicação, nós fazemos, sem hesitar, algo sem qualquer razão em particular, para além da própria regra. Não é verdadeiro que agir de acordo com um regra queira sempre dizer agir de acordo com a interpretação de uma regra. E a concordância que resulta entre aqueles que a sequem,na aplicação, não é uma concordância em termos de interpretação, mas sim em suas ações.

É compreensível que o sociólogo possa se sentir incomodado pelo uso extremamente geral que Wittgenstein faz de termos como “ regra” ou “ convenção”. Mesmo que ele seja particularmente sensível à distinção que deve ser feita entre uma regra que participa realmente da ação do jogo e uma regra que simplesmente explique essa ação para um observador externo, as regras às quais ele se refere não são evidentemente regras explícitas, nem forçosamente regras que os jogadores estariam dispostos a reconhecer – caso fossem questionados - como sendo as regras que eles aplicam. Wittgenstein diz das proposições que ele chama de “regras gramaticais” que elas geralmente não são formuladas e que raramente constituem objeto de um aprendizado explícito. Nós as absorvemos com todo o resto ao aprender a linguagem, sem nos darmos conta. Dizer que alguém utiliza uma palavra conforme uma convenção qualquer não significa evidentemente que uma convenção qualquer tenha sido ensinada (passada). Nas suas lições dos anos 1932-1935, Wittgenstein esclarece esse ponto da seguinte forma: “A questão é a de saber o que é uma convenção. É uma ou outra das duas coisas, uma regra ou uma prática/treinamento. Uma convenção é estabelecida ao se dizer qualquer coisa em palavras por exemplo: “Todas as vezes que eu bater as mãos uma vez, vá até a porta, e se eu bater as mãos duas vezes, distancie-se da porta.” [...] Por uma convenção eu entendo que o uso de um signo está de acordo com os hábitos da linguagem ou com um treinamento (prática) linguístico. Pode ser que exista uma cadeia de convenções na base da qual se possa encontrar um hábito de linguagem ou um treinamento para se reagir de determinadas maneiras. Estas últimas, nós não chamamos ordinariamente de convenções, pois a esta palavra nós reservamos as convenções que são estabelecidas por signos. Nós podemos dizer que esses signos possuem o papel que possuem por causa de certos modos habituais de agir.” [CC, p. 112] Existem, portanto, casos nos quais a convenção é primeira e o hábitus linguístico segundo, e outros, provavelmente mais numerosos, nos quais a convenção é apenas um modo de designar o habitus linguístico em si mesmo.

 



O valor explicativo do conceito de habitus

 


 

 

Bourdieu caracteriza o habitus, no sentido no qual ele designa a palavra, como sendo “o produto da incorporação da necessidade objetiva”. “O habitus, necessidade feita virtude, produz estratégias que, mesmo não sendo produtos de intenção consciente de fins explicitamente determinados sobre a base de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica de causas, se encontram objetivamente ajustados à situação. A ação que guia o “sentido do jogo” possui todas as aparências de ação racional que desenharia um observador imparcial, equipado com todas as informações úteis e capaz de dominá-las racionalmente. No entanto, ela não possui a razão como princípio. É suficiente pensar à decisão instantânea do jogador de tênis que vai em direção à rede em um momento inoportuno: compreendemos então que eessa resolução não possui nada em comum com a construção estudada que o treinador, após análise, elabora para compreender e para tirar dali lições comunicáveis.” [CD, p. 21] Evidentemente, não há nenhum sentido em dizer que os hábitos linguísticos pelos quais se interessa Wittgenstein constituem o produto da incorporação de uma necessidade objetiva qualquer. A tese da autonomia da gramática significa precisamente que as regras ou, se preferirmos, os hábitos linguísticos que correspondem ao domínio de uma linguagem, não demonstram uma necessidade preexistente, mas são eles mesmo a origem da necessidade, pelo menos da necessidade que Wittgenstein chama de “lógica” ou “gramatical” .

Não é obviamente o caso de abordar aqui o problema do grau de independência que o sociólogo está disposto a reconhecer a esse tipo de necessidade tendo em vista que, por razões evidentes, a necessidade pela qual ele se interessa deve ser a expressão de coerções eminentemente factuais de tipo social. É mais interessante se perguntar o que Bourdieu pode realmente esperar explicar com a sua noção de habitus. Na passagem que acaba de ser citada, ele nos diz que o habitus possui a capacidade de engendrar comportamentos que, mesmo sendo adquiridos, possuem todas as características do comportamento instintivo e que, mesmo não implicando aparentemente nenhuma forma de reflexão ou cálculo, produzem resultados que coincidem de maneira notável com aqueles que obteríamos por um cálculo racional. É fato que um treinamento apropriado é capaz de desenvolver em um sujeito mediano automatismos que, com relação ao resultado, possuem toda aparência de uma ação refletida e inteligente e que lhe dita “o que deve ser feito” precisamente no caso em que ações refletidas e inteligentes não são possíveis. Entretanto, não se adiciona grande coisa a uma constatação desse tipo simplesmente falando, como o fez Bourdieu, das “intuições de um 'senso prático' que é produto da exposição durável a condições semelhantes àquelas nas quais [os agentes] se localizam” [CD, p. 21]. Como observa – surpreso – Wittgenstein, nós sentimos uma propensão irresistível a crer que uma modificação significativa deve ter sido produzida no espírito ou no cérebro de alguém todas as vezes que essa pessoa tenha adquirido um hábito ou um modo de fazer regular. E nós pensamos que a explicação propriamente dita não poderia ser formulada a menos que formulássemos a descrição de um estado hipotético de um mecanismo mental ou cerebral que nós talvez descobriremos algum dia. É possível que com relação a esse ponto nós estejamos sempre como Lord Kelvin, que declarava não poder compreender um fenômeno antes de conseguir construí-lo como um modelo mecânico.

Bourdieu nos diz também que o habitus “pode servir de base para uma previsão (equivalente intelectual das antecipações práticas da experiência ordinária)”, a despeito do fato de que este “não encontra seu princípio em uma regra ou uma lei explícita” [CD, p. 96]. Wittgenstein diz da palavra “compreender” que ela serve ao mesmo tempo para designar uma experiência mental, que acontece fora da audição ou da pronúncia da palavra e, o que é bem diferente, como algo que é da natureza de uma aptidão ou de uma capacidade: “O uso da palavra 'compreender' repousa sobre o fato de que, na enorme maioria dos casos, no momento em que nós tenhamos efetuado certos testes, nós estamos preparados para predizer que um homem utilizará a palavra em questão de certas maneiras. Se esse não fosse esse o caso, não haveria mais nenhum interesse para nós na utilização da palavra “compreender”.” [CFM, p. 11-12] Mas Wittgenstein não pretende explicar – e eu não sei se há um modo satisfatório de fazê-lo – a maneira pela qual um processo de aprendizagem pode produzir o tipo de consequências sensivelmente incomparáveis ao pequeno número de exemplos e de situações que foram consideradas explicitamente - que nós caracterizamos com a ajuda da palavra “compreender”.

As explicações em termos de disposições ou de habitus podem ser suspeitas de permanecerem essencialmente verbais na medida em que não podem se tornar objeto de uma caracterização suficientemente independente da simples descrição do tipo de regularidade comportamental às quais elas correspondem. Como observou Quine, uma explicação disposicional se assemelha a um reconhecimento de dívida que se espera ser capaz de recuperar algum dia pela produção da descrição de uma propriedade estrutural correspondente, como faz o químico com relação ao predicado disposicional “solúvel em água”. No entanto, está claro que a legitimidade do uso de um termo disposicional não pode estar subordinada em todos os casos à esperança ou à promessa de uma redução deste tipo e que as disposições não podem ser irredutíveis sem serem também distorcidas (irrédentes) porque a ideia de uma espécie de “recuperação” não possui propriamente nenhum sentido neste caso e resulta de uma tendência deplorável quando se compara seu status ao de predicados como “solúvel em água”.

Em um dos raros desenvolvimentos que Wittgenstein consagra à noção de disposição, ele escreve: “Uma disposição é concebida como qualquer coisa que está sempre lá, através da qual se desenrola um comportamento. É análogo à estrutura de uma máquina e seu comportamento. Existem TRÊS enunciados diferentes que parecem dar sentido à proposição “A ama B”: (I) um enunciado não disposicional que concerne a um estado consciente, ou seja, os sentimentos; (2) um enunciado que diz que, em determinadas condições, A se comportará de uma determinada maneira, (3) um enunciado disposicional que diz que, se um certo processo ocorre no seu espírito, ele se comportará consequentemente de uma determinada maneira. Estes correspondem à descrição de uma ideia que designa seja um estado mental, seja um conjunto de reações, seja o estado de um mecanismo que possui por consequência o comportamento e certas sensações, simultaneamente. Parece que nós distinguimos aqui três significações para “A ama B”, mas não é o caso: (I) do que resulta que A ama B pois ele experimenta certos sentimentos, (2) do que resulta que A ama B ao se comportar de um determinada maneira. Estes dois casos apresentam significados da palavra ‘amor’. Mas o enunciado disposicional (3), que faz referência a um mecanismo, não é um enunciado autêntico, ele não nos oferece um significado novo. Os enunciados disposicionais são fundamentalmente enunciados sobre um mecanismo. A linguagem utiliza a analogia de uma máquina, que nos extravia constantemente. Em uma grande quantidade de casos, nossas palavras possuem a forma de enunciados disposicionais que fazem referência a um mecanismo, quer esse mecanismo exista ou não. No exemplo que se refere ao amor, ninguém possui a mínima ideia do tipo de mecanismo ao qual é feita referencia. O enunciado disposicional não nos diz nada sobre a natureza do amor, é apenas uma maneira de descrevê-lo. Das três significações, aquela disposicional é a única que não é realmente uma descrição. É na realidade um enunciado que diz respeito à gramática da palavra “amor”. “ [CC. p. 114-115].

Wittgenstein nota que a palavra “compreender” possui forma disposicional: “Mesmo não se referindo a uma maquinaria, como ela parece fazer, o que há por trás da gramática desse enunciado é a imagem de um mecanismo montado para reagir de determinadas maneiras. Nós acreditamos que, se pudéssemos ver somente a maquinaria, nós saberíamos o que é compreender.” [CC, p.115]

Uma das razões pela qual Bourdieu desconfia da ideia de mecanismo subjacente é justamente o fato de que as condutas que importam explicar não possuem o tipo de regularidade estrita que produziria um mecanismo. “As condutas engendradas pelo habitus não possuem a bela regularidade das condutas deduzidas de um princípio legislativo: o habitus possui parte de suas relações ligadas ao fluido e ao vago. Espontaneidade geradora que se afirma na confrontação improvisada com situações constantemente renovadas, ele obedece a uma lógica prática, aquela do fluido, do quase, que define a relação ordinária com o mundo.” [CD, p.96]. A noção de habitus ou uma outra do mesmo gênero parece efetivamente indispensável para entender de modo adequado regularidades de um certo tipo, que não são determinadas de maneira rígida, comportando em sua essência um elemento de plasticidade, de variabilidade e indeterminação. Elas também implicam adaptações, inovações e exceções de todos os tipo, regularidades que caracterizam precisamente o domínio da prática, da razão prática e do senso prático. Mas a dificuldade é que, como observa Wittgenstein, nós temos uma propensão irresistível a procurar um mecanismo lá onde não há nenhum e a crer que a explicação real não pode ser encontrada se não for a esse nível. O que parece evidente no caso da palavra “compreender” deveria sê-lo igualmente com relação à maioria dos termos que designam habitus linguísticos ou sociais: nós deveríamos resistir à tentação de nos crermos obrigados a continuar procurando uma espécie de máquina do não-mecânico. Boa parte da resistência que nós opomos às ideias de Bourdieu não provém, como se poderia crer, da hostilidade ao mecanismo, mas da tendência a crer que nós compreenderíamos a sociedade se conseguíssemos de alguma maneira ver a maquina social em ação.

 

 

 

Abreviações


 

CC Ludwig Wittgenstein, Les Cours de Cambridge 1932-1935, texto em inglês e tradução de Elisabeth Rigal, TER, 1992.

 

CD Pierre Bourdieu, Choses Dites, Minuit, 1987.

 

CFM Ludwig Wittgenstein, Cours sur les fondaments de mathématiques. Cambridge 1939, texto em inglês traduzido por Elisabeth Rigal, TER, 1995.

 

CW Oets Kolk Bouwsma, Conversations avec Wittgenstein (1949-1951), traduzido do inglês por Layla Raïd, Agone, 2001.

 

GP Ludwig Wittgenstein, Grammaire philosophique, traduzido de Maria-Anne, Galimmard, 1969.

 

LL Pierre Bourdieu, Leçon sur la leçon, Minuit, 1982.

 

PU Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen/ Philosophical Investigations, texto alemão e tradição em inglês de G.E.M. Ascombe, Blackwell, 1953/1998.





[1] Gottfried Wilhelm Leibniz, Opuscules & fragments inédits, publicados por Louis Coutirat, Gerog Olms, Hildesheim, 1996, p.474

[2] Daniel C. Dennett, Elbow Room: The Varietirs of Freee Will Worth Wanting, Clarendon Press, Oxford, 1984, p.5.

[3] Ibid., p.8.

[4] Ibid., p.7

[5] Jerrold J. Katz e Jerry A. Fodor, “The Structure of a Semantic Theory”, in The Structure of Language. Readings in the Philosophy of Language, Prentice-Hall In., Englewood Cliffs (NJ), 1964, p.501.

[6] G.P.Parker e P.M.S.Hacker, Language, Sense and Nonsense. A Critical Investigation into Modern Theories of Language, B. Blackwell, Oxford, 1984, p.313.

[7] John McDowell, Mind & World, Harvard UP, Cambridge (Mass.), 1994, p. 176-177.

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